sexta-feira, 7 de março de 2014

A filósofa do século XX, Hannah Arendt, no cinema

Não estamos a anunciar uma novidade; apenas a registar um acontecimento importante...
Em Outubro do ano passado estreou, nas salas de cinema em Portugal, o filme Hannah Arendt, centrado num momento da vida desta filósofa do século XX: a sua cobertura, para a revista americana New Yorker, do julgamento do oficial nazi  Adolf Eichmann, em 1961, em Jerusalém.
Hanna Arendt formulará um dos seus conceitos mais fecundos, o da banalidade do mal, através do qual podemos compreender como é possível a um homem,  aos homens, participar em atos absolutamente condenáveis e monstruosos quando estes se inscrevem num quotidiano banal e quando quem neles participa se demite da responsabilidade de pensar e de responder pelas suas ações enquanto agente moral.
O que Hanna Arendt mostra é que qualquer um de nós, em qualquer tempo, em qualquer lugar, se pode tornar num agente do mal se as circunstâncias históricas e políticas o propiciarem, a partir do momento em que nos demitamos da nossa capacidade humana de pensar, de falar e de agir.




Hannah Arendt: um hino à liberdade
por Ricardo Nabais                                                                              6 de Outubro, 2013




Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, estreou na quinta-feira – o filme retrata uma das filósofas mais importantes do século XX, defensora da liberdade de pensamento e que cunhou o conceito da banalidade do mal, a propósito de Adolf Eichmann, oficial nazi julgado e executado em Israel.

A cena poderia passar-se em qualquer redacção do mundo. Neste caso, aconteceu na da célebre revista New Yorker. O director, William Shawn, sabe que está perante um momento histórico, o julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazi célebre por ser um dos rostos da ‘solução final’ desenhada por Hitler, o do extermínio dos judeus. E tem à sua frente, caída do céu, uma proposta para a cobertura desse julgamento – que, se não foi o ‘do século’, na época, andou lá perto – por parte de Hannah Arendt, filósofa judia alemã exilada nos EUA e ela própria com uma passagem por um campo de concentração enquanto fugia do holocausto nazi.

A chefe de redacção, céptica, pergunta-lhe: “É mais uma filósofa europeia? Sabes que eles não têm limites para escrever e não são conhecidos por cumprirem prazos”. Shawn defende Arendt e segue com a aposta: “É um privilégio”.

O diálogo terá acontecido assim naquela redacção, em 1961, ano do julgamento de Eichmann em Jerusalém, onde estava detido depois de ser raptado pelos serviços secretos israelitas na Argentina. E foi reproduzido no mais recente filme de Margarethe von Trotta, estreado o ano passado na Europa e que só agora (na próxima quinta-feira) chega às salas portuguesas. A produção leva o nome da filósofa, uma das pensadoras mais marcantes do século XX pela originalidade e independência, interpretada pela actriz e cantora lírica Barbara Sukowa, outra referência do cinema alemão contemporâneo, como von Trotta.

Mas, ao contrário do que seria de esperar dos ditames da indústria cinematográfica, Margarethe von Trotta não se perde a fazer um filme biográfico e encerrar em duas horas estandardizadas uma vida tão complexa. O filme centra-se nos anos entre a ida de Arendt a Israel para a cobertura do tal julgamento e a polémica que se seguiu à publicação do seu artigo na New Yorker. É que a ‘filósofa europeia’ não só cumpriu os prazos de entrega, desfazendo o medo dos responsáveis da redacção da revista, como partiu a loiça. Ao contrário do que seria de esperar, Hannah Arendt não descreve um monstro, nem sequer alguém mentalmente perturbado no julgamento. Ela tem pela frente um homem de uma banalidade desconcertante.

Se os actos praticados por Eichmann não encaixam na figura, então como foi possível este homem, que alega em sua defesa limitar-se a cumprir ordens, ser capaz de chefiar a temida Unidade IV D 4/4 e IV B 4 do exército nazi e ser pessoalmente responsável pela organização geral da deportação dos judeus da Alemanha e dos países europeus deportados? Longe de o desculpar, Hannah Arendt quer compreender. E é daí que lhe surge o conceito da banalidade do mal, um dos mais conhecidos do seu pensamento. Nesta altura, Arendt já tinha escrito duas obras de referência para a compreensão da génese dos regimes autoritários que floresceram na Europa no tempo da Segunda Guerra: As Origens do Totalitarismo (1951), em que denuncia a origem do nazismo e do estalinismo, e A Condição Humana (1958), na qual descreve a sua teoria política.

Qualquer um pode ser Eichmann?

A partir daí, entramos no clímax do filme. A dimensão humana de Arendt, que von Trotta retrata, dizem os entendidos, fielmente, é posta à prova logo após a publicação do artigo. A comunidade judia reprova-lhe a classificação de um criminoso de guerra nazi como um homem banal, mas não lhe perdoa de todo a denúncia que faz, no mesmo artigo, da inépcia dos líderes judeus da época, que viram a catástrofe a acontecer quase impavidamente.

A coragem custou-lhe até amizades de uma vida. Mais uma vez, interessava-lhe não perdoar, mas compreender sem crucificar previamente: “A banalidade do mal foi, no fundo, uma resposta à questão: ‘como foi possível acontecer?”, diz Sofia Roque, que está a trabalhar Numa tese de doutoramento sobre Arendt, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Se hoje aceitamos com alguma facilidade que qualquer pessoa, em qualquer época, pode ser um Eichmann ou um Hitler em potência, nos anos 60 isso não era assim. Quando Arendt formula a ideia, os acontecimentos ainda eram analisados muito a quente. No fundo, a ideia é coerente com o mais profundo dos pensamentos da filósofa: “A compreensão é o modo da política, sem ela não nos podemos situar no mundo”, acrescenta Sofia Roque, citando a autora. Arendt nem sequer parece à vontade, no filme, com o facto de se estar a fazer do nazi uma figura exemplar. Para ela, se uma pessoa abdicar, devido a determinadas circunstâncias históricas, de fazer o que a torna verdadeiramente humana – pensar – pode transformar-se num monstro.

Sofia, que viu o filme na única apresentação que teve em Portugal, a 25 de Maio no São Jorge (Lisboa), no âmbito da Judaica – 1.ª Mostra de Cinema e Cultura, recorda ainda o humanismo da personagem construída por von Trotta, que nem se esqueceu de pequenas conversas da filósofa com os muitos amigos que cultivou ou até o modo como Arendt se deitava no sofá, a fumar – era uma fumadora inveterada –, de olhos fechados, a organizar pensamentos.
[...]

E qual será o lugar do pensamento de Hannah Arendt na actualidade? São poucos hoje os que reclamam o modo como a filósofa pensa a tolerância, a humanidade, e sobretudo a acção política. “Ela não define os objectivos da acção política, nunca se assumiu em nenhum ‘ismo’ ou disse se era de esquerda ou de direita”, esclarece Sofia Roque. Antes defende “a ideia de um sistema de pequenos conselhos, de órgãos cuja dimensão permitisse a participação directa” dos cidadãos nas decisões, um pouco como o espaço público da polis na democracia ateniense da Antiguidade. Para Arendt, a política é antes de tudo um espaço de liberdade entre plurais que podem discutir, a partir do momento em que são cidadãos livres, “o sistema social, de justiça e de igualdade”.

Retirámos daqui, onde se pode ler o artigo completo:


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