sexta-feira, 22 de abril de 2016

Qual a coisa certa a fazer?

No livro Justice - What's the right thing to do?, do filósofo norte-americano Michael Sandel, em tradução portuguesa (de Portugal) com o título, Justiça - Fazemos o que devemos? editado pela Presença, encontramos muitas das questões que abordamos com os nossos alunos do 10º ano no tema da Fundamentação da Ética e no da Ética, Direito e Política. O texto escorreito, os exemplos clarificadores, a acessibilidade da linguagem sem trair o rigor dos conceitos são virtudes desta obra. 

Aconteceu que numa das aulas com alunos do 10ºano, a propósito das objeções ao utilitarismo, referi o conto de Ursula K. Le Guin, (do qual tomei conhecimento precisamente através da leitura desta obra). Alguns alunos manifestaram particular interesse. Transcrevo, então, o texto de Sandel:

"A história (The Ones Who Walked Away from Omelas») fala de uma cidade chamada Omelas - uma cidade de felicidade e glorificação cívica, um lugar sem reis nem escravos, sem anúncios ou bolsa de valores, um lugar sem bomba atómica. Para que este lugar não se torne demasiado irrealista de imaginar, a autora diz-nos mais uma coisa sobre ele:«Numa cave sob um dos lindos edifícios de Omelas, ou talvez no porão de uma das suas espaçosas residências privadas, há um compartimento. Tem uma porta trancada e nenhuma janela.» E neste compartimento está sentada uma criança. A criança está delirante, mal-nutrida e mal cuidada. Passa os dias na mais abjeta das misérias.
Todos sabem que ali está, todas as pessoas de Omelas... Todos sabem que tem de ali estar... Todos percebem que a sua felicidade, a beleza da sua cidade, a ternura das suas amizades, a saúde das suas colheitas e o clima ameno dos seus céus, dependem inteiramente da miséria abominável daquela criança... Se a criança fosse retirada daquele vil lugar e trazida para a luz do dia, se fosse limpa e alimentada e confortada, seria deveras bom, mas se o fizessem, nesse mesmo instante toda a prosperidade e beleza e encanto de Omelas definhariam e seriam destruídos. Estas são as condições.
Serão essas condições moralmente aceitáveis? A primeira objeção ao utilitarismo de Bentham, a que apela aos direitos humanos fundamentais, afirma que não - mesmo que conduzam a uma cidade de felicidade. Seria errado violar os direitos da inocente criança, mesmo em prol da felicidade da população."

Sandel, Michael, Justiça- Fazemos o que devemos? Editorial Presença, Lisboa, 2011, p.49-50

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Os efeitos do LSD no cérebro



Por incrível que pareça, eis as primeiras imagens do cérebro sob efeito de LSD


Trabalho poderá ajudar ao uso de psicotrópicos no tratamento de problemas psiquiátricos, dizem os cientistas.

Imagens de ressonância magnética do cérebro de uma pessoa sob o efeito do LSD (à direita), onde há mais ligações entre regiões compartimentadas do cérebro, e sob o efeito de um placebo (à esquerda) IMPERIAL COLLEGE-FUNDAÇÃO DE BECKLEY/REUTERS

Pela primeira vez, obtiveram-se imagens do cérebro de pessoas sob o efeito de LSD (sigla em inglês de dietilamida do ácido lisérgico) e descobriu-se que esta droga psicadélica liberta o cérebro, tornando-o menos compartimentado e mais semelhante à mente de um bebé. Enquanto o cérebro trabalha normalmente com redes neuronais independentes que realizam funções separadas como a visão, o movimento e a audição, quando se está sob o efeito de LSD este isolamento entre redes é desmantelado, o que leva a um sistema mais unificado, adianta uma equipa liderada por cientistas do Imperial College de Londres, no Reino Unido.
“Em muitos aspectos, o cérebro sob o efeito de LSD assemelha-se ao cérebro que tínhamos quando éramos crianças: liberto e sem constrangimentos”, disse Robin Cahart-Harris, que coordenou o estudo. “Isto também faz sentido quando consideramos a natureza híper-emocional e imaginativa da mente da criança.” 
A descoberta, publicada na edição desta semana da revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences, também mostrou que, quando os voluntários tomaram LSD, muitas outras partes do cérebro – e não só o córtex visual – contribuíam para o processo visual. Isto pode explicar as alucinações visuais complexas que muitas vezes estão associadas aos efeitos do LSD, disse o cientista.
Esta experiência também parece estar ligada ao “melhoramento do bem-estar” depois dos efeitos da droga desaparecerem, segundo Robin Cahart-Harris, sugerindo que estes dados poderão um dia levar ao uso de compostos psicadélicos para tratar doenças psiquiátricas. Esses fármacos poderiam ser úteis em pessoas com padrões enraizados de pensamentos negativos, explicaram os cientistas, como no caso da depressão e do vício de substâncias.
“Pela primeira vez, podemos realmente ver o que se passa no cérebro durante o estado psicadélico, e podemos compreender melhor por que é que o LSD tem um impacto profundo na autoconsciência”, disse David Nute, professor de neuropsicofarmacologia que trabalhou com Carhart-Harris. Quando se perde esta sensação de autoconsciência dá-se uma “dissolução do ego”, uma dissolução do sentido do “eu” e ocorre uma mistura do “eu” com os outros e o mundo natural – um fenómeno associado ao consumo de LSD. “Isto pode ter grandes implicações para a psiquiatria.”
A equipa do Imperial College trabalhou com a Fundação de Beckley, uma organização de Oxford que apoia a investigação científica sobre o eventual benefício médico de substâncias psicoactivas. O estudo, financiado pela fundação e por doações públicas através de uma plataforma de “crowdfunding”, envolveu 20 voluntários saudáveis a nível físico e psicológico. Cada um deles tomou tanto LSD como um placebo.
Todos os voluntários já tinham tomado drogas psicadélicas. Nas experiências, que foram controladas e supervisionadas, cada voluntário recebeu uma injecção de 75 microgramas de LSD ou de um placebo. Os cérebros foram analisados usando várias técnicas, incluindo a ressonância magnética e a magneto-encefalografia. Estas técnicas permitiram aos cientistas estudar a actividade do cérebro como um todo, monitorizando a circulação sanguínea e a actividade eléctrica dos neurónios.
“Observámos mudanças no cérebro sob o efeito de LSD que sugerem que os nossos voluntários estavam a ‘ver com olhos fechados’ – apesar de estarem a ver coisas vindas da sua imaginação e não do mundo exterior”, explicou Carhart-Harris. “A força deste efeito correlacionava-se com as avaliações feitas pelos voluntários das visões complexas, semelhantes a sonhos, que tinham.”
O LSD foi produzido em 1938 por Albert Hofmann, químico suíço. Os seus efeitos só foram conhecidos anos mais tarde. Mas foi durante a década de 1960, no seio da contracultura norte-americana, que a substância se tornou famosa. Mais tarde, por causa dos seus efeitos psicotrópicos, passou a ser proibida. Esta proibição tornou impossível, durante décadas, a investigação científica sobre os efeitos desta substância. Nos últimos anos, esta tendência tem sido invertida.
A ingestão de LSD pode causar alterações de humor, um sentido de distorção do espaço e do tempo, e comportamentos impulsivos. As pessoas podem tornar-se cada vez mais desconfiadas das intenções de terceiros e agirem agressivamente, adianta por sua a enciclopédia “Britannica”. Por isso, fora de um ambiente controlado como o das experiências científicas descritas acima, os efeitos deste químico podem ter consequências perigosas.

A palavra dos filósofos - o filósofo estóico EPITECTO

O que perturba os homens não são as coisas, mas os juízos que os homens formulam sobre as coisas. A morte, por exemplo, nada é de temível - e Sócrates, quando dele a morte se foi aproximando, de maneira nenhuma se apresentou a morte como algo de tremendamente terrível. Mas no juízo que fazemos da morte, considerando-a temível, é que reside o aspeto temível da morte. Quando somos hostilizados, contrariados, perturbados, atormentados e magoados, não devemos sacar as culpas a outrem, mas a nós próprios, isto é, aos nossos juízos pessoais e mais íntimos. Acusar os outros das suas infelicidades é mera ação de um ignorante; responsabilizar-se a si próprio por todas as contrariedades coisa é de um homem que começa a instruir-se; e não culpabilizar ninguém nem tão pouco a si próprio, então, sim, então é já feito de um homem perfeitamente instruído.

Epitecto, Manual de Epitecto, Lisboa, Ed. Vega, 1992, p.23

ESTOICISMO - DICIONÁRIO FILOSÓFICO

1. Corrente filosófica fundada por Zenão de Cítio (332-264 a.C.) no terceiro séc. antes da era cristã e que está associada a pensadores como Séneca (4 a.C.-65 d.C.), Epicteto (50-138 d. C.) e o imperador romano Marco Aurélio (121-180 d. C.). Para os estóicos, a filosofia tem como finalidade essencial formar o homem sábio. A Sabedoria consiste na prática da virtude, em viver de acordo com a natureza ou a ordem racional (logos) do universo. O logos é a divindade imanente ao mundo e tudo governa necessariamente. O Sábio, com serenidade e autodomínio, compreende o carácter necessário do que acontece. O estoicismo desenvolveu a primeira moral de tipo universal fundada na igualdade de princípio de todos os homens (considerados cidadãos do mundo — cosmopolitismo). (...)LR
 Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, em http://www.defnarede.com/c.html

2. Estoicismo - Escola filosófica grega, deriva seu nome da Stoa Poikilé, um pórtico em Atenas onde lecionava o seu fundador, o filósofo Zenão de Cicio, sendo também, por vezes, conhecida como filosofia do Pórtico. O estoicismo desenvolveu-se como um sistema integrado pela lógica, pela física e, pela ética, articuladas por princípios comuns. E, no entanto, a ética estóica que teve maior influência no desenvolvimento da tradição filosófica, chegando mesmo a influenciar o pensamento ético cristão nos primórdios do cristianismo. Na concepção estóica, os princípios éticos da harmonia e do equilíbrio baseiam-se, em última análise, nos princípios que ordenam o próprio cosmos. Assim, o homem, como parte desse cosmos, deve orientar sua vida prática por esses princípios. A ataraxia, imperturbabilidade, é o sinal máximo de sabedoria e felicidade, já que representa o estado no qual o homem, impassível, não é afetado pelos males da vida. É sobretudo da valorização dessa atitude impassível que se deriva o termo estóico, em seu sentido corrente. (...) Historicamente, o estoicismo pode ser dividido em três períodos: I) o estoicismo antigo, fundado por Zenão de Cicio (c.335-264 a.C.) e difundido principalmente por Cleantes (331-232 a.C.) e Crisipo (c.280-c.205 a.C.); 2) o estoicismo médio, de caráter mais eclético, cujos principais representantes são Panécio (e.180-c.110 a.C.) e Posidônio (135-51 a.C.); e 3) o estoicismo romano, imperial ou novo, representado por Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), Epicteto (50-125 ou 130) e Marco Aurélio (121-180). 

H. JIAPIASSÚ e MARCONDES, Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro, Zahar Ed. 2001, em http://dutracarlito.com/dicionario_de_filosofia_japiassu.pdf

A palavra dos filósofos - Epicuro

Que ninguém, por ser jovem, tarde em filosofar nem, por ser velho, se canse da filosofia. Porque nunca se é nem demasiado jovem nem demasiado velho para alcançar a saúde da alma. O que diz que a hora de filosofar ainda não chegou, ou que já passou, é semelhante ao que diz que a hora de ser feliz ainda não chegou, ou que esta hora já findou. Por conseguinte, tanto o jovem como o velho devem filosofar, um para que, apesar de a idade avançar sobre ele, se conserve jovem em bens, por causa da alegria que sente em relação ao passado, o outro para que, embora jovem, possa simultaneamente amadurecer graças ao seu destemor diante do futuro. Convém, por isso, meditar sobre as coisas que dão origem à felicidade, pois quando ela está presente temos tudo, enquanto que se está ausente tudo fazemos para a alcançar.
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É por esta razão que dizemos que o prazer é o princípio e o fim da vida feliz. Pois é ele que reconhecemos com o bem primeiro e natural, a partir do qual fazemos todas as escolhas e rejeições, e é a ele que nos referimos quando julgamos qualquer bem tomando o sentimento como critério. Ora é justamente porque este é o bem primeiro e natural que não escolhemos qualquer prazer, antes, por vezes, desprezamos muitos, sempre que deles resulte um desprazer maior para nós.

Epicuro, «Carta a Meneceu», 122 e 129, in Cartas, Máximas e Sentenças, Lisboa, Edições Sílabo, 2009.
  

Epicuro e a Felicidade

Alain de Botton, escritor atualmente a desenvolver o seu trabalho no Reino Unido, é o autor desta série documental, «Filosofia: um guia para a felicidade», em que apresenta um conjunto de filósofos e nos mostra como, independentemente da época em que surgiram, as suas propostas e a reflexão que sobre elas possamos fazer nos ajudam a ser capazes de viver melhor.
Como temos andado às voltas com esta ideia de Felicidade, a propósito do nosso trabalho no 10ºano, e como referimos Epicuro, não nos parece nada má ideia esta apresentação simples e apelativa.


EPICURO E A VIDA FELIZ


«PRINCIPAIS IDEIAS: Para Epicuro o objetivo da vida feliz é o prazer, mas, em que consiste a felicidade? É bom ter muitos desejos? Segundo este filósofo o prazer e a felicidade são certamente os critérios condutores do ser humano. O problema está em definir qual é o verdadeiro prazer e como optimizar o bem-estar pessoal, lembrando que a um prazer imediato corresponde muitas vezes uma dor futura. Segundo Epicuro a solução mais sábia está em submeter a busca da felicidade ao juízo da razão. É preciso, portanto, eliminar os medos inúteis (da morte, dos deuses, da dor), moderar as necessidades de modo que o seu gozo não se transforme no contrário e, principalmente, a tranquilidade do espírito, a serenidade.
Cálculo do prazer - Consiste na ideia de Epicuro de que é possível maximizar o bem-estar da vida por meio do cuidadoso cálculo matemático, dos sacrifícios e do prazer decorrentes de um comportamento. O cálculo não deve considerar somente as consequências imediatas, mas também, as de longo prazo, posto que, frequentemente, satisfazer um desejo provoca uma imediata felicidade.
Necessidades - Epicuro distingue três tipos de necessidades: 1) Necessidades naturais e essenciais, a serem saciadas sempre (por exemplo, a fome, a sede, o sono). Dependem das necessidades biológicas do corpo e, se não forem satisfeitas, produzem a morte. 2) Necessidades naturais e não essenciais, a serem buscadas com moderação ou nem mesmo assim (por exemplo, comer bem ou demais, exceder-se nas práticas sexuais). 3) Necessidades não naturais e não essenciais, que nunca devem ser buscadas, pela sua natureza artificial (glória, sucesso, riqueza, riqueza, beleza).
Hedonismo - Corresponde à doutrina do Epicurismo, pela qual o prazer é o fim e o princípio de uma vida feliz, objetivo em direção ao qual todo indivíduo orienta a própria ação. No entanto, segundo Epicuro, é preciso distinguir entre prazer efémero (felicidade, alegria) e prazer estável, definido pela negativa, como ausência de dor. Dado que somente o segundo tipo de prazer é perseguido pele sábio, o Epicurismo condena a tentativa de satisfazer indiscriminadamente todo desejo, defendendo a necessidade do racionalismo ético, ou seja, um sensato controle da razão sobre as emoções e as pulsões do espírito.»
Bibliografia:
CHAUI, Marilena – Iniciação à Filosofia; Ed. Ática, 2009
LAW, Stephen – Guia Ilustrado Zahar de Filosofia; Ed. Zahar, 2008

EPICURISMO - DICIONÁRIO FILOSÓFICO

1. Juntamente com o ESTOICISMO e o CEPTICISMO, uma das três grandes filosofias do período helenístico. Tem origem na filosofia de Epicuro (341-271 a. C), filósofo grego que em 306 fundou em Atenas uma escola chamada "Jardim". O epicurismo retoma e desenvolve o atomismo de Leucipo e Demócrito, defendendo que os únicos existentes per se são os corpos, constituídos por átomos, e o espaço vazio, ambos infinitos. O universo é eterno e infinito e o nosso mundo é apenas um entre muitos. O prazer é o único bem e o objectivo natural do ser humano, ao qual todos os outros se subordinam. O sofrimento é o único mal e não existe qualquer estado intermédio. O nosso objectivo principal é minimizar o sofrimento, o que se consegue através de um modo de vida simples e do estudo da física, o qual elimina as duas principais fontes de angústia, o receio dos deuses e da morte, e permite alcançar um estado de tranquilidade ou imperturbabilidade (ataraxia), que constitui a forma de felicidade mais elevada e o objectivo correcto da vida.

Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, em http://www.defnarede.com/c.html


2. Epicurismo - Doutrina de Epicuro e de seus seguidores segundo a qual, na moral, o bem é o prazer. isto é, a satisfação de nossos desejos e impulsos de forma moderada, levando assim à tranquilidade. Por extensão. e de forma imprópria. este termo passou a aplicar-se a todo aquele que faz do prazer ou do gozo o objetivo da vida, o assim denominado "epicurista". (...) Segundo Epicuro, o prazer é o começo e o fim da vida feliz e constitui o Bem supremo, cujo modelo perfeito nos é fornecido pela vida de delícias levada pelos deuses. Mas trata-se de um prazer obtido apenas no término de um discernimento refletido. Epicuro (341-270 a.C.)

H. JIAPIASSÚ e MARCONDES, Dicionário Básico de Filosofia, Rio de Janeiro, Zahar Ed. 2001, em http://dutracarlito.com/dicionario_de_filosofia_japiassu.pdf

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Comemoram-se 50 anos do reconhecimento de Aristides de Sousa Mendes como «Justo entre as Nações»

Aristides de Sousa Mendes é, hoje em dia, um nome que os nossos alunos já reconhecem. Felizmente. Há uns anos não era assim... Quando saiu a Lista de Schindler, em 1993, o «nosso» cônsul era, entre a população escolar (e não só) praticamente um desconhecido... 
Nas aulas de filosofia socorremo-nos frequentemente da situação vivida por Aristides de Sousa Mendes a propósito da análise de situações de dilema moral em que a deliberação prévia à tomada de decisão enfrenta particulares dificuldades. O conflito de valores e as perdas associadas a qualquer das alternativas de ação fazem com que estas situações sejam frequentemente trágicas.  Enquanto cônsul em Bordéus, durante o ano de 1940, em plena II Guerra Mundial, Sousa Mendes, em liberdade e consciência, contrariou as ordens do Governo português e decidiu passar vistos que permitiram a salvação de, entre judeus e não judeus, 30 mil refugiados, 30 mil vidas humanas, 30 mil pessoas.
A notícia vem hoje no Jornal Público com um artigo de Zita Moura sob o belo título «Aristides de Sousa Mendes: desobediência, gratidão, memória, raízes» (https://www.publico.pt/sociedade/noticia/aristides-de-sousa-mendes-desobediencia-gratidao-memoria-raizes-1728268 e transcreve-se parcialmente:

Cumprem-se 50 anos sobre o reconhecimento do cônsul Aristides de Sousa Mendes como “Justo entre as Nações”. Outros 30 sobre o pedido de desculpas do governo português à família e sobre a promoção póstuma a embaixador. E 76 anos sobre os nove dias em que o diplomata ajudou 30 mil pessoas a sobreviver.





Foi pela pressão das comunidades israelitas, em Portugal e nos EUA, junto das altas instâncias judaicas, americanas e portuguesas, que se recuperou a memória de um cônsul remetido ao esquecimento. Um homem que deliberadamente colocou em risco a sua carreira e a sua vida ao desobedecer a ordens directas do Governo salazarista, em plena Segunda Guerra Mundial. O cônsul assinou 30 mil vistos a refugiados, judeus ou não, que vinham fugidos da morte certa — da guerra ou dos campos de concentração.
14 de Junho de 1940: Paris é ocupada pelas tropas nazis, e o Governo transfere-se para Bordéus, onde trabalhava o cônsul Aristides de Sousa Mendes. Milhares de pessoas deslocam-se para sul. A França ainda era livre. Três dias depois, os franceses assinam a rendição à Alemanha nazi. Sousa Mendes toma em mãos a missão de tentar salvar tantos refugiados quanto possível, indo contra as ordens da circular n.º14, emitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Lisboa.


Pelas suas acções, Sousa Mendes foi condenado por Salazar a uma vida de miséria. Perdeu o trabalho, não se pode reformar, nem encontrar outro trabalho. Perdeu a Casa do Passal, em Cabanas de Viriato. Os seus filhos foram proibidos de ingressar no ensino superior. O único apoio que a família Sousa Mendes teve foi das comunidades judaicas, que ajudaram alguns dos seus filhos a partirem para os EUA e o Canadá. O cônsul morreu em 1954, vítima de múltiplos AVC, remetido ao esquecimento.
Foi em Bordéus que Sousa Mendes conheceu o rabi Kruger, a quem ofereceu “todos os confortos da sua casa”, contava o religioso num depoimento de 1966. Recusou, no entanto, o convite, por querer permanecer junto dos milhares de outros judeus que estavam na cidade à procura de uma forma de escapar. Terá sido aí, a 17 de Junho de 1940, que Sousa Mendes se comprometeu em salvar tantos quantos refugiados pudesse, judeus ou não, ao emitir vistos que contrariavam as ordens de Lisboa.

Depoimento do rabi

O depoimento do rabi Chaim Kruger surgiu no ano em que o cônsul foi reconhecido como “Justo entre as Nações” pelo Estado de Israel. Este título honorífico é atribuído às pessoas não judias que usaram “a sua vida, liberdade, ou estatuto” para salvar uma ou mais vidas judias durante o Holocausto. Há mais de 25 mil “justos entre as nações” dos quais três são portugueses. Aristides de Sousa Mendes foi o primeiro a receber o título, postumamente, em 1966. Mas só 20 anos após a atribuição deste título é que o governo português reconheceu oficialmente as acções do cônsul. Foi apresentado um pedido de desculpas à família Sousa Mendes e Aristides recebeu o estatuto de embaixador e a medalha da Ordem da Liberdade.
Em memória de Aristides decorreu ontem uma celebração dupla. A Casa do Passal, em Cabanas de Viriato, onde Aristides passou grande parte da sua vida e tinha a sua casa familiar, celebrou 16 anos como Fundação Aristides de Sousa Mendes. E em Nova Iorque foi inaugurada a exposição Portugal, a última esperança: os vistos para a liberdade de Sousa Mendes.
No ano em que se cumpre meio século sobre a atribuição do título de “Justo entre as Nações” (em Outubro de 1966), a Federação Sefardita Americana, em colaboração com a Sousa Mendes Foundation, organizou a mostra, no Centro para a História Judaica, incluindo imagens e documentos inéditos.
A Sousa Mendes Foundation, com sede na mesma cidade americana, foi criada em 2010 por descendentes do diplomata e dos beneficiários dos vistos que passou em Junho de 1940.
Alguns dos artefactos em mostra foram cedidos pelo museu A Fronteira da Paz, em Vilar Formoso, outros pelo Instituto YIVO para a Pesquisa Judaica (radicado nos EUA). Há bonecos que vinham nas mãos das crianças refugiadas, fotografias, diários de guerra, e uma troca de cartas entre Joana Sousa Mendes, filha do cônsul, Fred Zinneman, realizador ao serviço da Warner Brothers, e Ilya Dijour, da Sociedade de Apoio ao Imigrante Hebreu (HIAS).
Joana Sousa Mendes enviou a Ilya Dijour, que foi um dos 30 mil refugiados a receber um visto português, uma cópia do livro escrito pelo seu irmão Sebastião de Sousa Mendes e publicado sob o pseudónimo Michael d’Avranches. O livro Flight through Hell é um romance semificcionado sobre a obra humanitária do cônsul em Bordéus e foi aprovado pelo próprio, três anos antes da sua morte. Joana Sousa Mendes enviou o livro a Ilya Dijour, em 1959, e em Abril de 1960 é contactada por Fred Zinneman, realizador austro-americano nascido na Polónia que estava ao serviço da Warner Brothers.

Ideia de guião

Zinneman, na carta enviada à filha do cônsul, descreve as acções de Sousa Mendes como “extraordinárias”, mas explica-lhe que não faria um filme sobre elas, já que eram “demasiado comoventes para serem sentimentalizadas e profanadas por um meio de entretenimento comercial”. Em contrapartida, enviou o livro e uma cópia da carta de Joana Sousa Mendes para Robert Anderson, um aclamado dramaturgo americano. Um mês depois, Ilya Dijour propôs a Robert Magidoff, escritor e jornalista russo expulso do seu país e residente nos EUA, que escrevesse um guião para um filme sobre o cônsul. Dijour ressalva nessa carta que conhecia o rabi Kruger e o próprio cônsul.
Seis anos depois desta troca de cartas, que acabou por não resultar em nenhum filme ou peça de teatro, o Yad Vashem, o Centro para o Reconhecimento e Memória do Holocausto, reconhece Aristides de Sousa Mendes como “Justo entre as Nações”. Um reconhecido estudioso do Holocausto, Yehuda Bauer, descreve as acções heróicas de Aristides de Sousa Mendes como “provavelmente, a maior acção de resgate por um único indivíduo durante o Holocausto”.(...).


terça-feira, 5 de abril de 2016

A nossa memória, um novo instrumento contra a depressão?

Este post é a tradução parcial do artigo de Philippe Lambert, publicado a 28/03/2016, em http://le-cercle-psy.scienceshumaines.com/notre-memoire-nouvel-outil-contre-la-depression_sh_36074, com o título  




Notre mémoire, nouvel outil contre la dépression ?

Os pacientes depressivos apresentam uma deterioração do sentimento de continuidade de si, causada pela perda de uma representação coerente da sua pessoa no passado, no presente e no futuro. Não sabendo já verdadeiramente quais são os seus valores, as suas crenças e os seus objetivos, perguntam-se de certa forma quem são.
Precisamente, a memória autobiográfica intervém de maneira crucial na elaboração do sentimento da continuidade de si. Com efeito, o seu papel é o de permitir o armazenamento e a tomada de consciência de todas as informações pessoais relativas ao nosso passado. Dito de outro modo, ela alberga lembranças ricas e detalhadas de acontecimentos pessoalmente vividos e conhecimentos gerais sobre si - nome, idade, aptidões, gostos, etc. Segundo a corrente iniciada em 2005 pelo psicólogo Martin Conway, da Universidade de Bristol, as lembranças autobiográficas asseguram-nos um traço estável e coerente das nossas interações com o mundo. O passado e o presente iluminando o porvir, são estas mesmas lembranças que nos permitem representarmo-nos no futuro.

Os acontecimentos mais importantes
Existe uma classe de lembranças autobiográficas particulares: as «lembranças que definem o eu»[em francês, souvenirs définisant le soi] (em inglês, self defining memories), conceito elaborado em 1993 pelos psicólogos americanos Jefferson Singer e Peter Salovey. De que se trata? De lembranças autobiográficas das quais se pode dizer sucintamente que caracterizam muito bem uma pessoa, que apresentam um laço direto com uma preocupação persistente ou um conflito não resolvido e são reveladoras de valores, objetivos, e crenças que habitam um indivíduo. Exemplo: «Cada vez que que visitava os meus avós, via-os discutir. Dizia para mim, então, que a vida de casal não era feita para mim, que nada é melhor do que a liberdade, mesmo com o preço da solidão.»
Jefferson Singer não hesita em falar de lembranças que definem o eu como «os registos seletivos dos acontecimentos mais importantes da nossa vida.» Escreve além disso:«O conteúdo, a forma e o poder emocional destas lembranças podem mudar de forma subtil ou dramática ao longo da nossa vida. O que causa estas mudanças é a evolução dos nossos interesses, dos nossos anseios e dos nossos objetivos. Visto que nós mudamos a direção do nosso futuro, a contribuição das nossas experiências passadas para esta nova direção torna-se mais ou menos importante.» (1) Tomemos o exemplo de um médico de clínica geral que fechasse o seu consultório para se juntar a uma associação humanitária em África. A experiência mostra que, com essa decisão, o conteúdo, a estrutura formal e a valência emocional (positiva ou negativa) das lembranças que definem o eu modificam-se.
Se, em terapia, o psiquiatra ou o psicólogo convida um paciente depressivo a enunciar as lembranças que lhe correspondem verdadeiramente, a sua análise permitir-lhe-á perceber a maneira como o paciente apreende o mundo, e nomeadamente se o seu fim é de perseguir o sucesso ou o de evitar os fracassos e o sofrimento.
À semelhança de Jefferson Singer, cada vez mais autores preconizam hoje o desenvolvimento de terapias centradas nas lembranças que definem o eu. Fazê-las emergir deve permitir o acesso aos temas de ruminações mentais, muito frequentes, que caracterizam o estado depressivo.(...) 


(1) Singer J, et al. Memories that matter: How to use self-defining memories to understand and change your life (p.23). Oakland: New Harbinger Publications 2005


sábado, 2 de abril de 2016

O Caso do Homem Que Memorizava Tudo



Neste livro, editado em português pela Relógio D'Água, o psicólogo A.R. Luria relata a vida de um homem com uma memória fora do comum que acompanhou ao longo de trinta anos. Este estudo começou em meados dos anos vinte do século passado.

Transcrevemos da Introdução:
« Este breve relato sobre a memória de um homem baseia-se numa impressionante história. Durante quase trinta anos o autor teve a oportunidade de observar sistematicamente um indivíduo cuja memória excecional era uma das mais fascinantes alguma vez descritas pela literatura desta área.
A enorme quantidade de material reunido, durante esse período, tornou não só possível explorar os principais padrões e estratégias de funcionamento dessa memória, que era para todos os efeitos práticos inesgotável, como ainda delinear as características da personalidade deste homem extraordinário.
Ao contrário de outros psicólogos, que se dedicaram ao estudo de pessoas que possuíam um dom excecional, o autor não se restringiu a medir a capacidade e a estabilidade da memória do paciente ou a descrever os esquemas utilizados pelo mesmo para recordar e reproduzir o material. Ele estava de longe mais interessado em estudar outros aspetos importantes da personalidade e no desenvolvimento desta, nos hábitos individuais do pensamento e da imaginação e no comportamento do indivíduo? Quais as mudanças que ocorrem no mundo interior de uma pessoa, nas suas relações com os outros, no seu próprio estilo de vida, quando um elemento da sua constituição psíquica, a memória, atinge um grau de desenvolvimento tão invulgar que começa a alterar todos os outros aspetos da sua atividade mental?» (pp. 30-31)

Daniel Tammet: diferentes formas de conhecimento



Daniel Tammet tem sinestesia linguística, numérica e visual — o que significa que a sua percepção das palavras, números e cores está entrelaçada numa nova forma de apreender e compreender o mundo. O autor de "Nascido num Dia Azul", Tammet partilha a sua arte e a sua paixão por línguas neste vislumbre da sua mente maravilhosa.
(retirado de
https://www.ted.com/talks/daniel_tammet_different_ways_of_knowing?language=pt)

Neste video Daniel Tammet mostra-nos que há diferentes modos de entender e de resolver problemas, que há diferentes modos de interpretar a realidade, que há diferentes modos de aceder à compreensão das coisas...





Daniel Tammet

imagem retirada de:
https://www.ted.com/talks/daniel_tammet_different_ways_of_knowing?language=pt

Escritor, poeta e linguista apresentando um síndrome de Asperger, nasceu em Londres em 1979. Dotado de uma memória fora do comum, desenvolveu grandes aptidões em línguas estrangeiras e em cálculo. Em 2007 aparece a sua autobiografia, Nascido num dia azul (...). Publicou recentemente, em 2013, A eternidade numa hora. A poesia dos números.
(informação retirada de: http://le-cercle-psy.scienceshumaines.com/entretien-avec-daniel-tammet-de-la-synesthesie-a-la-poesie_sh_30772)



O jovem que não esquecia nada

Este post é tradução parcial do artigo de Justine Canonne, intitulado «Le jeune homme qui n'oubliait rien», publicado a 29/05/2012 e que pode ser consultado no seguinte endereço:
http://le-cercle-psy.scienceshumaines.com/le-jeune-homme-qui-n-oubliait-rien_sh_29031

Uma equipa de investigadores em neurociências da Universidade Vanderbilt, em Neshville, nos Estados Unidos, debruçou-se recentemente sobre um caso de hipermnésia de um jovem de uns vinte anos. O jovem americano, designado no estudo pelas suas iniciais, H.K., é dotado de uma memória autobiográfica excecional. Ele pode lembrar-se com precisão de experiências pessoais vividas desde a infância. Diz levantar-se todos os dias recordando aquilo que fez no mesmo dia do ano anterior.
   A equipa de investigadores testou a memória de H.K., selecionando 4 datas para cada ano da vida do jovem desde os três anos e meio, idade das primeiras lembranças. No total, 80 datas foram assim distinguidas. Para obter elementos sobre o vivido de H.K. e também controlar a veracidade das suas lembranças, a equipa consultou a envolvente familiar, os seus vizinhos.(...) H. K. foi de seguida interrogado sobre as 80 datas, sob a forma seguinte: «Pode dizer-me o que se passou durante o dia de 2 de janeiro de 2001?». O jovem americano foi interrogado duas vezes sobre ceretas datas e as suas respostas foram constantes. 
  Primiera constatação depois das respostas verificadas: as lembranças de H.K. ganham em precisão à medida que avança na idade. Para as lembranças relativas aos 11 anos, o nível de exatidão era de cerca de 90%. A justeza das suas lembranças aumenta em seguida até se aproximar da exatidão perfeita.

Uma hipertrofia da amígdala
O caso de H. K. é único no género: o jovem hipermnésico é com efeito cego. Nascido prematuro, foi atingido por uma retinopatia do prematuro, causa da sua cegueira. H.K. explica que associa frequentemente os acontecimentos de que se lembra às emoções que então sentiu. O laço entre memórias e emoções constitui uma das chaves da hipermnésia de H.K.? Os investigadores parecem inclinados a pensar que sim. A estrutura do seu cérebro foi, aliás, explorada pela imagiologia médica e comparada a uma trintena de cérebros de indivíduos da mesma idade. (...) A principal observação diz respeito à amígdala, um conjunto de núcleos situados no sistema límbico, ele mesmo implicado nas emoções e na memorização. No cérebro de H. K. a amígdala tem um tamanho superior em 20% aos dos cérebros normais. Esta característica do cérebro de H.K. poderia ter um papel na sua hipermnésia.

Dois casos no mundo
Um tal caso de hipermnésia permanece excecional. Casos de indivíduos dotados de capacidades de memorização superiores à média já foram recenseados nos anos setenta e oitenta, mas diziam respeito a pessoas capazes de memorizar longas listas de palavras ou de números, sem poder no entanto restituir de maneira precisa experiências pessoais. H.K. é até à data a segunda pessoa conhecida dotada de tal particularidade.
  O outro caso, o de A.J., uma mulher de trinta anos, foi estudado por uma equipa de investigadores americanos em 2006.. A jovem mulher explicava aliás que a sua hipermnésia que muitos viam como um dom, representava um «fardo», a sua espantosa capacidade impedia-a de esquecer os acontecimentos desagradáveis e as emoções que lhe estavam associadas.

Lembrando MNEMOSINE




Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), Mnemosine
(imagem retirada de http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Mnem%C3%B3sine?file=Mnemosyne.jpg
Mnemosine é a personificação da Memória de onde vem mais diretamente, por exemplo, a nossa palavra mnemónica. Tem, até, uma tradução vulgar muito conhecida que é a de cábula. Isso mesmo, o que se usa como substituto da memória...
Voltando a Menmosine, esta é uma das primeiras divindades, filha de Úrano (o Céu) e Geia ( a Terra).
Da sua união com Zeus gera as nove musas, responsáveis pelas artes em geral.
E o que têm as artes, as produções humanas, a ver com a memória? Tudo, pois é através do que o homem é capaz de criar e de conservar, que se perpetua no tempo e que se constrói numa história. A História, entendida inicialmente como  narrativa dos feitos dos homens, ligada à musa Calíope, é a forma de as sociedades transmitirem e preservarem a sua memória coletiva. É esta memória coletiva que garante a continuidade dos diferentes grupos humanos enquanto povos com uma determinada identidade.
Paralelamente, a nível pessoal, a memória é também a garantia da identidade.